Plataformas digitais: classificação, mercado e modalidades de trabalho

O objetivo deste texto é contribuir para a discussão sobre plataformas virtuais de produção, tendo como focos sua conceituação econômica, uma proposta de classificação, suas formas de expansão e as modalidades de trabalho geradas.

Introdução

A essência do comércio é a transformação da mercadoria (física ou virtual) em dinheiro[1], sendo, portanto, parte integrante e indispensável ao ciclo de valorização do capital. A produção, ao transformar insumos em produtos com uso de equipamentos e mão de obra, vende seus produtos ao comércio que os realiza por meio do pagamento dos consumidores, constituindo um processo integrado, financiado pelo capital bancário e difundido pelos meios de comunicação.

A concorrência entre os produtores, objetivando aumentar transitoriamente a taxa de lucro, impõe a contínua redução de custos, melhorias de qualidade, especialização de produtos por segmentos de mercado e investimentos na marca.

O desenvolvimento tecnológico vem sendo o principal fundamento a orientar os produtores para aumento da produtividade (redução do tempo de concepção de produtos, dos tempos mortos[2] e da mão de obra), da redução do lote mínimo de produção e da incidência dos insumos. Com isso, o aumento e a diversificação da produção se torna uma tendência natural da oferta de mercadorias. Este processo tensiona crescentemente o comércio, forçando-o a aumentar a rotatividade de estoque – uma das razões econômicas do onmichannel[3]. No entanto, a realização da mercadoria pelo comércio é limitada pela renda disponível do consumidor final, majoritariamente composta pela renda do trabalho (assalariado e autônomo)

Grosso modo, quando o aumento da taxa média da produtividade industrial não for acompanhado pela taxa média de aumento da massa salarial, a concorrência entre os produtores se acentua, dado que, em tese, há possibilidade de que a produção exceda o consumo. Mesmo mantendo o nível de produção, por decorrência do desemprego tecnológico[4], o aumento da produtividade atua no sentido de reduzir a massa salarial.

Considerando conjuntamente a limitação de mercado consumidor e os avanços tecnológicos, um dos principais artifícios usados pelo produtor para aumentar sua participação no mercado tem sido acelerar a frequência de lançamentos e, ao mesmo tempo, especializá-los para satisfazer diferentes preferências dos consumidores. Para tanto, há tempo, a indústria tem desenvolvido produtos baseados em plataforma como forma enfrentar a necessária depreciação dos investimentos em projeto, ferramentais, instalações, treinamento e divulgação de seus lançamentos, o que passaremos a tratar nas seções subsequentes.

1. Plataforma de linha de produtos: conceito

Trata-se de uma modalidade de desenvolvimento de uma linha de produtos baseada num núcleo fundante de componentes e processos estritamente elementares, indispensáveis, estáveis e absolutamente consistentes entre si (infraestrutura ou kernel), a ser compartilhado pela incorporação de componentes (próprios ou de terceiros, constituintes do seu ecossistema) que personalizam seus produtos finais. O compartilhamento da plataforma é inerente ao seu conceito. Os principais objetivos a serem alcançados pela plataforma são:

  1. Reduzir o capital imobilizado;
  2. Reduzir o tempo de desenvolvimento, o tempo gasto em testes, a diversidade e estoque médio de componentes dos produtos;
  3. Aumentar a flexibilidade e reduzir custos de lançamentos a partir incorporação de componentes a um núcleo comum;
  4. Generalizar o uso, permitindo que ela seja acoplada ou se acople a outras plataformas (interoperabilidade);
  5. Prolongar o ciclo de vida da linha de produtos por meio da escolha e qualidade funcionais dos componentes do kernel e da facilidade na incorporação de componentes adicionais.

A escolha dos componentes fundantes se constitui um dos pontos chaves na construção de plataformas. Quanto mais restritos forem os recursos de uma plataforma, maiores serão os custos de desenvolvimento de seus componentes, comprometendo sua flexibilidade. Por outro lado, considerando a natural rigidez das plataformas, seu excesso funcional também compromete sua flexibilidade, pois os componentes adicionais terão pouca abrangência funcional.

A indústria automotiva é pródiga em produzir plataformas físicas. Segue um exemplo de componentes de uma plataforma da GM: eixo dianteiro, eixo traseiro, coluna de direção, front end, sistema de freio, sistema de suspensão, tanque de combustível, sistema de exaustão, estrutura de bancos e alguns componentes elétricos[5].

2. Classificação das plataformas

As plataformas podem ser classificadas segundo alguns critérios:

Natureza dos componentes: físicos ou digitais.

Propriedade: privada ou pública, em geral, as plataformas físicas são privadas.

Custo do usuário: gratuito ou sob pagamento.

Código: aberto ou fechado.

Se de código aberto, é permitida a modificação do kernel e, neste caso, a integridade original deixa de ser garantida pelo fabricante. Praticamente, plataformas físicas não admitem mudanças em seu ciclo de vida.

Incorporação de componentes: aberta ou fechada.

Se aberta, a incorporação de componentes é liberada e, se fechada, somente componentes desenvolvidos por ela ou por ela autorizados podem ser incluídos.

Canal de vendas de componentes: centralização, certificação e controle da oferta de componentes por intermédio de loja própria da plataforma ou livre mercado

Custo da intermediação de componentes: retenção de parte da receita da venda de componente pela loja própria da plataforma ou não.

Exemplos:

    Linux Windows Xbox Android Magento Uber
Propriedade Pública X    
  Privada   X X X X X
Uso Gratuito X     X X  
  Sob pagto   X X   * X
Código Aberto X     X X  
  Fechado   X X     X
Incorporação Aberta X X X X X  
  Fechada           X
Canal Loja     X X X  
  Livre X X        
Publicação[6] Paga     X      
  Gratuita       X X  

Elaborado pelo autor

* Enterprise Edition não é gratuita

3. Gestão da plataforma

As plataformas físicas são estáveis, porém as digitais são passíveis de evolução. Melhorias e extensões funcionais propostas pelos usuários (comunidade) são avaliadas por um comitê de gestão. Tal análise deve manter (se não, melhorar) a plena continuidade de todos os componentes incorporados, ampliar a oferta de recursos e assegurar a total integridade entre os componentes básicos. Levando em conta tais restrições e as enormes dificuldades técnicas a elas inerentes, os ciclos de alterações do kernel não são curtos. Alterações que descartem parte da funcionalidade de seu ecossistema somente são praticadas em caso de esgotamento de suas potencialidades de uso e/ou obsolescência da tecnologia usada.

4. Consequências do desenvolvimento de sistemas baseado em plataformas

Apresentamos a seguir algumas consequências decorrentes do processo de desenvolvimento de sistemas baseados em plataformas.

Concentração das plataformas

O objetivo dos desenvolvedores de componentes é aumentar sua receita pela extensão de seu uso. Com tal objetivo, há preferência em incorporá-los à plataforma com maior participação de mercado. Como os componentes fazem uso dos recursos funcionais postos à disposição pela plataforma e, considerando que tais recursos não são comuns entre as plataformas, os componentes tendem a ser exclusivos da plataforma originalmente escolhida. Assim, quanto maior for a participação de mercado de uma plataforma, maior será a produção de componentes a ela direcionados, contribuindo diretamente para disseminação de seu uso.

Este processo de ganho de participação de mercado não é necessariamente meritocrático em termos técnicos, ou seja, nem sempre a melhor plataforma será a mais popular.

Popularização por aquisição

Dado que a participação de mercado é essencial para o aumento do ecossistema da plataforma, a centralização pela aquisição de concorrentes passa a ser natural, assim, a disponibilidade de capital constitui-se num dos fatores chave para a popularização, razão pela qual muitas empresas de software passam a se comportar como fundos de investimento.

Plataforma digital: rendimentos crescentes

O custo de instalação de cada nova unidade da plataforma digital é praticamente nulo[7], pois, trata-se de um bem imaterial, não rival (posse não implica em propriedade) e de uso não exclusivo.

O investimento inicial na construção de uma plataforma é muito alto em termos de tempo e qualificação da mão de obra. A gradual extensão do uso da plataforma, viabilizada gratuitamente pelo seu ecossistema[8], obviamente dilui o investimento inicial assim como reduz, quando houver, o custo de instalação da unidade adicional. Com o investimento inicial restituído, os ganhos são certamente crescentes. Em consequência, como pode ser comprovado, uma plataforma digital bem-sucedida tende a ser gratuita para os usuários finais dos produtos que a utilizam e, considerando a coincidência de interesses entre o ecossistema e o comitê gestor (aperfeiçoamento e longevidade da plataforma[9]), o custo de manutenção da plataforma tende a ser coberto pela própria comunidade de desenvolvedores[10].

A geração de trabalho

Recordando, um dos objetivos do desenvolvimento de linhas de produto baseadas em plataforma é facilitar a adaptação de produtos dela originários às mudanças e/ou preferências dos consumidores: a especificação do produto final fica a cargo dos componentes a serem incluídos na infraestrutura compartilhada. Os componentes são necessários à plataforma, caso ela seja aberta, é criado um mercado cativo de componentes dela dependentes.

O desenvolvimento de componentes é gerador de trabalho, porém, como seu produto é uma mercadoria, ele está sujeito às incertezas do marketplace da plataforma. A incerteza na venda de componentes deve-se à concorrência: sendo especifico de uma plataforma, seu ciclo de vida será tão curto quanto o do produto final que o utiliza[11]; seu desenvolvimento demanda mão de obra menos qualificada – pelos menos, quando comparada à usada na manutenção da plataforma e sua complexidade técnica é moderada devido à sua pequena abrangência funcional.

É importante ressaltar que nem sempre os componentes fazem parte de um produto final, por vezes, eles mesmos são produtos finais, fator que potencializa a concorrência. Um exemplo são os videogames serem desenvolvidos sobre a plataforma Xbox[12].

O desenvolvimento de componentes é parte integrante e importante de tudo o que se fala sobre empreendedorismo e inovação.

5. “Plataformas” de intermediação de mercadoria e serviços

O termo plataforma tem sido vulgarizado. Por exemplo, este termo chegou ao ponto de ser usado por alguns sistemas de front end que não foram concebidos sob esta arquitetura. A verdadeira gênese destes sistemas, que se autodenominam plataformas, manifesta-se na dificuldade de incorporação de componentes de terceiros ou na grande abrangência funcional da “plataforma”[13]. A expansão deste tipo de “plataforma” não se realiza por meio de seu ecossistema, mas por aquisição e propaganda.

Dentro do exposto neste artigo, uma “plataforma” que seja fechada (não admite a inclusão de componentes desenvolvidos por terceiros), independentemente de sua abordagem construtiva, não preenche um dos requisitos básicos para assim ser considerada, a criação de um ecossistema, fator fundamental formação de uma comunidade de desenvolvedores de software, geradora de trabalho e propulsora natural de sua disseminação. Sob este critério, as “plataformas” de intermediação do comércio de mercadorias e serviços, publicidade digital e redes sociais abusam do conceito.

Tais plataformas podem ser classificadas como ilustra o quadro abaixo:

Tipos Exemplos
 Intermediação Mercadorias Amazon
  Serviços manuais Uber, ListMinut
  Serviços intelectuais CoCotest, MTurk
  Hospedagem AirBnb
Publicidade digital Comparadores de preço Buscapé, Bondfaro
  Redes sociais Facebook, Instagram
  Site de busca Google, Explorer

Elaborado pelo autor

A intermediação comercial aumenta a eficiência do mercado pelo aumento do tempo útil de instalações, de mão de obra e de equipamentos e aproveitamento de insumos. A redução do tempo de atendimento da demanda, como um imperativo para a viabilidade da intermediação, necessariamente implica a expansão de seus associados, consequentemente, aumenta a concorrência entre eles e, como não é difícil concluir, rebaixando preços de mercadorias e serviços oferecidos, ainda penalizados pelo pagamento da comissão pelo serviço de intermediação. Isso significa queda do preço médio às custas da redução da margem dos vendedores[14] componentes dos marketplaces e, devido à expansão da oferta de trabalho, queda do rendimento médio dos associados às plataformas que terceirizam serviços[15].

Ao prestarem serviços de consultas e troca de mensagens, as plataformas de publicidade digital armazenam, processam e transformam as informações coletadas, construindo perfis a partir das preferências manifestas pelos seus usuários sobre produtos e serviços. Este conhecimento é o produto oferecido aos seus anunciantes. Levando em conta que o insumo (conhecimento de mercado) é praticamente gratuito, que a publicidade digital é um duopólio[16] e que, nos EUA, a receita dele supera a receita da publicidade na TV, pode-se imaginar a força de mercado que ele detém e o preço que pode cobrar.

A relação entre as plataformas de intermediação e de publicidade estão em transição. Há vários serviços virtuais prestados por ambas plataformas e, nesta disputa, as plataformas de publicidade contam com enorme vantagem tecnológica e de penetração no mercado.

 

Fernando Di Giorgi

Fevereiro de 2018

[1] Conhecida como realização da mercadoria.

[2] Refere-se à troca de ferramentais, à preparação de máquina, à espera de insumos, a manutenção corretiva, interrupção do fornecimento de utilidades etc.

[3] Canais de venda presencial e não presencial integrados.

[4] Substituição do trabalho vivo pela automação do processo produtivo.

[5] Wagner Confessor, “Tendências do setor automotivo brasileiro – plataformas Globais” p. 27 apud Moita, Rodrigo Farinelli.

[6] Refere-se à comissão cobrada pela loja da plataforma referente à venda dos componentes anunciados.

[7] Custo marginal tendendo a zero

[8] Externalidade positiva

[9] Plataformas de intermediação comercial, na contramão desta lógica, impõem comissões acima de 10%.

[10] Slogan dos “mozillians” “Somos uma organização orgulhosamente sem fins lucrativos, orientada por uma cultura de abertura e colaboração. É um valor que mantemos forte e é como trabalhamos juntos, dia após dia.” https://careers.mozilla.org/

[11] Caso contrário a plataforma não teria sentido.

[12] A taxa que a loja da XBOX cobra do desenvolvedor é de 30% da receita líquida.

[13] O limite máximo da abrangência funcional seria a coincidência da plataforma com “pacote” fechado, tão comum nos ERP’s.

[14] O que se estimula a concentração de mercado devido a saída de mercado de pequenos lojistas.

[15] O que pode ser caracterizado como precarização do trabalho

[16] Google e Facebook.

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