O legado tecnológico do e-commerce para o setor de serviços

Nas economias desenvolvidas, a mão de obra liberada pelo aumento da produtividade industrial foi sendo gradualmente absorvida pelo setor de serviços, notadamente quando parte dos ganhos produtivos eram repassados para os salários. O aumento da produção de mercadorias e aumento real da renda garantiam o “círculo virtuoso”, consequentemente, gerando, mais transações comerciais, financeiras, logísticas, securitárias, mercadológicas etc. A concentração do avanço tecnológico na produção de mercadorias acelerou o crescimento dos serviços em relação aos demais setores. Nos últimos 20 anos, a tecnologia de informação mudou este cenário. Este artigo tem a pretensão de discutir o potencial de mudanças em todas as atividades de serviço, tendo como base os recursos computacionais postos em produção pelo comércio eletrônico.

O texto obedece a seguinte sequência de assuntos: introduz sumariamente o conceito de inovação, relata as recentes inovações incrementais em TI, discorre sobre as dificuldades de sistematização das atividades de serviço, confronta as recentes inovações com os obstáculos à sistematização dos serviços sinalizando o potencial de transformações e, por fim, identifica os serviços que serão mais rapidamente transformados a partir de características operacionais que lhes sejam relevantes.

1. Introdução

Há um acervo enorme de invenções aguardando serem promovidas a inovações. As invenções se transformam em inovações quando se tornam economicamente viáveis, ou seja, quando a invenção é incluída no processo produtivo gerando, lucrativamente, novos produtos e mercados. Uma inovação[1] origina uma revolução tecnológica à qual continuamente são agregadas inovações incrementais.

2. Inovações tecnológicas incrementais

Particularmente, as altas taxas de crescimento do volume de transações e a valorização das empresas de comércio eletrônico viabilizaram várias inovações incrementais dentro da onda tecnológica iniciada em 1971 com o surgimento do microprocessador Intel.

Sob o ponto de vista técnico, entre as principais inovações postas massivamente em prática a partir de 1995, destacam-se: interligação da rede mundial (internet); o processamento em tempo real e em larga escala; a padronização de protocolos de comunicação (conexão entre sistemas); a recuperação de dados a baixo custo; a capacidade ilimitada de armazenamento de dados; as novas tecnologias construtivas de sistemas (a atomização dos módulos de programação hierarquicamente estruturados); o alargamento funcional do georreferenciamento; a plataforma independente de gerenciamento de processos; a incorporação de algoritmos na análise de dados (por exemplo: inteligência artificial e rede neural) e interconexão com dispositivos móveis. Do ponto de vista funcional, vale salientar: a redução do grau de dificuldade da incorporação de melhorias e novas funcionalidades aos grandes sistemas; o gerenciamento centralizado das operações de processos de produção, incluindo atividades descentralizadas, e a integração entre aplicativos altamente especializados (por ex. comércio e bancos, comércio e transporte). Tais instrumentos tecnológicos abriram as fronteiras para o uso da tecnologia da informação para muitos outros serviços.

3. Obstáculos à sistematização dos serviços

Para melhor entender o potencial de transformação dos serviços pela intensificação do uso das novas tecnologias é oportuno identificar os obstáculos que eles, tradicionalmente, têm interposto à sistematização de seus processos produtivos. Entre as mais importantes barreiras figuram a:

  1. Heterogeneidade dos modelos operacionais[2] (bancos, educação, alojamento, alimentação, saúde, comércio, transporte, seguros, telecomunicações, agência de viagens etc.);
  2. Profusão de fluxos alternativos de trabalho[3], principalmente devido à maior proximidade do consumidor final gerando instabilidade nos processos de trabalho[4];
  3. Existência de subprocessos geograficamente dispersos, por exemplo: vendas realizadas no escritório do cliente, as visitas dos representantes de laboratórios aos consultórios médicos, instalações ou manutenções realizadas em fábricas, escritórios ou residências, entrega em domicílio;
  4. Baixa participação de ativos reais (físicos) no capital das empresas em comparação com os demais setores econômicos;
  5. Mercado preponderantemente concorrencial, tendendo a direcionar investimentos para a expansão do nível de atividade em detrimento do aumento da produtividade;
  6. Dispersão da demanda e/ou oferta, aumentando o custo da transação – caso típico do serviço de taxi, da locação e venda de imóveis, de alojamento, venda de máquinas usadas etc.;
  7. Desconhecimento de disponibilidades em tempo real por exemplo: estoque, crédito, horas de trabalho de centros de produção;
  8. Dificuldades de coordenação do fluxo e monitoramento do trabalho, em geral, pelo desconhecimento da conclusão de atividades ou de suas interrupções, impedindo o disparo de atividades subsequentes.
  9. Dificuldade no processamento de informações não digitalizadas, não estruturadas ou em linguagem natural, exigindo postos de trabalho de atendimento com a finalidade de dar fluência ao processo produtivo.

O potencial de mudança

Comparando os novos recursos computacionais com as dificuldades operacionais clássicas dos serviços, pode-se inferir as grandes transformações que estão por vir, principalmente devido aos seguintes fatores:

1. A natureza dos serviços

O serviço é imaterial e, em geral, é consumido no ato de sua realização – uma exceção é o comércio por implicar a propriedade da mercadoria, porém, sabe-se que seu objetivo primordial é se rapidamente desfazer dela com lucro. O insumo básico dos serviços é a informação, justamente o que está em acelerada mudança.

Os investimentos iniciais em sistemas têm sido constantemente decrescentes. Já há alguns anos eles dispensam instalações físicas, bastam apenas desktops ou celulares conectados à internet, pois o processamento e armazenamento são realizados “em nuvem”. Desta forma, o potencial de transformação dos serviços aumenta, pois passam a contar com recursos tecnológicos até então indisponíveis.

Embora setor de serviços, como agregado, seja grande empregador, cada um de seus tipos por si tem cadeia de produção curta[5]. Quanto mais curta for a cadeia produtiva, menor serão as dificuldades de mudança, visto ser menor o número de participantes afetados. Ademais, a composição técnica da mão de obra nos serviços é muito desigual: o núcleo dirigente é reduzido e fortemente especializado, enquanto a grande maioria dos trabalhadores tem pouco conhecimento específico, razão pela qual se torna um terreno fértil para a automação.

2. Queda do custo e melhoria da qualidade da informação

Tem havido forte redução no custo da informação em função do aumento da velocidade de processamento resultante das inovações incrementais anteriormente aludidas, além do barateamento do licenciamento de software. Ao mesmo tempo, há sensível melhoria na qualidade da informação devido à sofisticação do processamento, ao reconhecimento de imagem e voz, centralização do processamento e do controle operacional.

3. O aumento da flexibilidade dos sistemas

Os sistemas passaram a se moldar às circunstâncias com maior rapidez e menor custo, perseguindo o objetivo de reduzir continuamente a intervenção dos trabalhadores no processo de produção, inclusive envolvendo as atividades de “decisão intensiva”[6].

O aumento da flexibilidade dos sistemas amplia o mercado de aplicativos, aumenta a taxa de utilização dos ativos existentes e, portanto, a eficiência do mercado. Alguns exemplos: os estoquistas dos depósitos das redes de lojas apenas cumprem ordens de serviços geradas pelo sistema de gerenciamento de armazém; parte do trabalho do atendimento pós-venda do comércio eletrônico passa a ser realizada por menus estruturados e pré-gravados; a automação da análise de crédito para compras online (autenticação do cartão); as operações bancárias realizadas por meio da internet etc.

4. O controle do fluxo de trabalho

As plataformas de gerenciamento de processos juntamente com o uso de dispositivos móveis possibilitam o controle total, centralizado e integrado do fluxo de trabalho, garantindo o cumprimento das regras de negócio preestabelecidas e o tempo de execução previsto. Esta tem sido a grande novidade que está “reformando negócios” e exigindo novas regulações de mercado. Os exemplos mais notórios são: Marketplace, Uber e Airbnb.

5. Intensificação do monitoramento do trabalho

Concentrando todas as informações provindas de todas as atividades pregressas e selecionamento da atividade a ser executada, o sistema passa a ter a competência de especificar e atribuir tarefas aos trabalhadores, limitando ao máximo seu campo de ação por meio de instruções preestabelecidas e controlando o tempo de execução. A implicação óbvia do aumento da precisão e da redução do tempo de trabalho é o rebaixamento do nível de especialização, portanto, a redução de custo com mão de obra. O controle de cada operação permite o conhecimento da produção de cada trabalhador, dando ensejo à diferenciação salarial por meio de pagamento de bônus por atingimento de metas. Um exemplo: o controle do trabalho dos motoristas associados ao Uber é integral, pois a plataforma de controle “sabe” onde cada um dos “uberistas” em atividade se encontra, conhece seu estado (ocupado ou livre), o destino e trajetória de cada corrida, o tempo gasto, o valor a ser cobrado e o grau de satisfação do cliente com o serviço realizado.

Características dos serviços mais susceptíveis à mudança

Confrontando barreiras e inovações tecnológicas incrementais acima descritas, os serviços que serão mais profundamente afetados serão aqueles em que as seguintes características abaixo têm maior preponderância:

  • Intervenção humana no processo produtivo exige pouca qualificação: o sistema deverá apropriar-se do conhecimento eliminando postos de trabalho. Nisso se enquadram as atividades que formatam adequadamente informação, conectando atividades automatizadas, caso típico de atendimento pós-venda;
  • Dificuldade da junção oferta-demanda: a plataforma tecnológica conhecendo a demanda e a disponibilidade da oferta em tempo real, aumenta a produtividade do ativo do ofertante e reduz o tempo de espera do demandante.
  • Desconhecimento de disponibilidades que provocam a interrupção do processo: por exemplo, a reserva de disponibilidades (seja ela qual for) no momento do contrato deve reduzir a ociosidade dos ativos e acelerar o ritmo da produção;
  • Dificuldade de integração da cadeia de serviços: uma plataforma deverá integrar os distintos serviços componentes do processo realizados por agentes especializados agentes (por exemplo: pagamento, logística interna, logística externa, montagem etc.)
  • Dificuldade na coordenação e monitoramento do trabalho onde parte dele é externo à empresa: dispositivos móveis conectados ao sistema central de controle “eliminam” a distância, ampliando a abrangência do controle operacional;
  • Comparação e análise de dados: o cálculo do prêmio de seguro com a sistematização das lógicas até então patrimônio de securitários experientes, diagnósticos por imagens resultantes de lógicas confrontando casos similares armazenados em grandes bancos de dados, prontuários de qualquer espécie online.
  • Reprodutibilidade do serviço com interação online: por exemplo, redução de instalações escolares e de profissionais de educação.
  • Expansão da oferta de serviço pela incorporação de ativos até então de uso exclusivamente privativo: aluguel de carros particulares, alojamento temporário em residências etc.

Finalizando, os recentes recursos da tecnologia da informação, muitos deles viabilizados pelo comércio eletrônico, permitem replicar nos serviços modelos operacionais tipicamente industriais, ou seja, a automação e aglutinação de atividades (integração do processo), qualidade assegurada dos insumos (no caso, a informação) e maior qualificação da mão de obra (aquela cujo patrimônio cultural ainda não pode ser embutido nas lógicas computacionais). Do ponto de vista empresarial, este caminho é inexorável, porém, do ponto de vista social, coloca-se a indagação: para onde migrarão os postos de trabalho eliminados nos serviços?

Fernando Di Giorgi – fevereiro de 2017

Artigo publicado na edição 38 da Revista e-commercebrasil em abril de 2017

[1] Exemplos: máquina a vapor, barateamento da produção do aço, eletricidade, motor a combustão, etc.

[2] O setor terciário (serviços) tem definição complementar, ou seja, reúne todas as atividades econômicas que não se enquadram nos dois outros setores: o primário (agricultura, extrativismo, pecuária e mineração), e o secundário, a indústria. Esta miscelânea dificulta muito sua caracterização.

[3] A existência de fluxos alternativos de trabalho se caracteriza quando um entre muitas atividades possíveis é selecionada por uma regra predefinida que processa todas as informações precedentes.

[4] A quantidade de fluxos alternativos resultantes de variáveis configuradas pelas atividades precedentes é uma das medidas do nível de complexidade do sistema. A diversidade aliada à escala e complexidade é uma das razões do atraso do desenvolvimento de pacotes verticais.

[5] A cadeia de produção não é integradora de muitos níveis de produtores, gerando menos postos de trabalho quando comparada com o setor industrial

[6] Decisões cuja alternativas dependem de lógicas complexas que somente deverão ser incorporadas ao sistema após a incorporação de lógicas mais fáceis ou outras, embora possam ser complexas, resultam em maiores benefícios.

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